Caráter
"É precisamente pela lógica perversa desse quadro [de violência urbana], pintado a sangue, por assim dizer, que a violência se instaura e se cristaliza em coisas: é assim que ela transforma em paredes os nossos medos mais profundos. Ela constrói concretamente o insondável de nossa inconsciência. Solidamente construídos e, ainda assim, quase não os percebemos".
Angelo Bucci, Razões da arquitetura. Da dissolução dos edifícios ou de como atravessar paredes (1)
E se os lugares não tivessem muros?
E se nossa casa ficasse sempre aberta?
E se nossa cidade fosse feita apenas de espaços abertos, desimpedidos, irrestritos, interligados?
E se a gente não aceitasse a ideia de que, para convivermos, seria preciso nos prendermos atrás de muros e evitarmos o perigo que acreditamos morar lá fora, a assustadora ameaça do outro?
As violências cotidianas formam a face mais dura da vida na cidade. Para se proteger, a gente demanda muros que cristalizam "nossos medos mais profundos", como diz o arquiteto paulista Angelo Bucci. Essa construção coletiva do medo invade todos os lugares e assume as mais diversas formas, das mais etéreas às mais sólidas, das mais cristalinas às mais opacas.
À criança, a imaginação permite enxergar no muro algo além da sua condição de divisão. Permite enxergá-lo como algo a ser atravessado, algo atrás do qual mora o desconhecido, a surpresa, um novo lugar a descobrir. A imaginação tem o poder de desafiar a realidade.

Transborda!, Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, Rio de Janeiro RJ Brasil, 2018. Arquitetos Antonio Pedro Coutinho e Adriano Carneiro de Mendonça (autores) / Estúdio Chão
Imagem divulgação [Estúdio Chão]
Convidados pelo MAR a criar uma arena para a programação pública de rodas, debates e performances durante o período da exposição Quem não luta tá morto! Arte, Democracia e Utopia, nós nos propusemos a provocar os próprios limites do museu com o espaço público. Imaginamos um conjunto de arquibancadas e plataformas que transformasse o ato de ocupar os pilotis do MAR num gesto de atravessamento de muros e ativação do espaço público.
TransBorda age como um dispositivo poético para provocar a realidade e fazer um chamado à imaginação, pondo corpos de todas as formas e idades em movimento sobre pés e mãos para atravessar o muro de vidro do pilotis do Museu de Arte do Rio. À semelhança de coisas como escorrega, pula-pula e trepa-trepa, TransBorda é verbo conjugado na ação do presente tanto quanto no imperativo, uma convocação à ação: transborda! Levanta pontes e desfaz, mesmo que por um momento, os muros de vidro que aprendemos a aceitar.
Enquanto lutamos para derrubá-los, talvez só mesmo a leveza da imaginação das crianças nos permita suspender a gravidade dos muros que conformam nossa realidade.
nota
1
Bucci, Angelo. Razões da arquitetura. Da dissolução dos edifícios ou de como atravessar paredes. São Paulo, Romano Guerra, 2010.
ficha técnica
projeto
Transborda!
local
Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, Rio de Janeiro RJ Brasil
ano
2018
área
258,00 m2
arquitetura
Arquitetos Antonio Pedro Coutinho e Adriano Carneiro de Mendonça (autores) / Estúdio Chão
comissionamento
Eleonora Santa Rosa (Diretora Executiva do MAR, 2018-2019) / Museu de Arte do Rio — MAR
cálculo estrutural
Limonge de Almeida
serralheria — módulos arquibancadas
João Luiz Sarti / Serralheria São Jorge
serralheria — módulos trepa-trepa
Dorival Dantas / Serralheria Conservolkis
cordoaria
Carlos Eduardo Ribeiro do Nascimento (Indio)
foto
Renato Mangolin / Daniela Paoliello
premiação
Finalista e vencedor na categoria Menção Honrosa do 8º Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake Akzonobel